sexta-feira, 14 de março de 2014

Entrevista com o escritor Igor Buys autor de "Versos Íncubos"



Igor, como e quando você iniciou a sua carreira como escritor?

Eu comecei a escrever poesias aos dezoito anos e meio de idade. Até esse momento, todos da família, inclusive, eu mesmo, achávamos que o meu caminho seria no campo das artes plásticas. Porque já nasci desenhando. Passei a infância desenhando, noite e dia. Os desenhos eram coisas que extraía da Mitologia Grega, com que tenho uma relação profunda, desde criança, e coisas que via na televisão, nos desenhos animados. Na adolescência, passei a desenhar mulheres. Sobretudo, mulheres nuas. Comprava a revista “Ele e Ela”, hoje extinta, creio, a revista “Playboy” e retratava as mulheres, sempre em grafite, preto no branco. Cheguei a prestar vestibular para Belas Artes naquele mesmo ano, em que completei dezoito, e passei bem, na prova de habilidade específica, inclusive, que incluía desenhar uma modelo vivo, de pé sobre uma mesa, mas perdi a data da inscrição... Andava com a cabeça nas nuvens. E, de repente, depois de ler dois livros do Décio Pignatari sobre literatura e semiótica, declarei: não desenho mais; agora vou escrever. A razão que apontei — além da forte impressão que as investigações de Pignatari me causaram, foi a seguinte: que a literatura você pode revisar, indefinidamente, e o trabalho de artes plásticas, não. Uma explicação que eu mesmo acho curiosa, hoje. Mas, ao mesmo tempo, observa-se que a revisão é parte essencial do meu processo como escritor.

De onde veio a inspiração para escrever o livro “Versos Íncubos”?

“Versos Íncubos” é uma compilação de poesias que, em sua maioria, estão relacionadas, inicialmente, a fatos externos a mim, i.e., fatos do dia-a-dia. As poesias de amor que são o centro do livro — e que escolhi, quando fiz a compilação, por serem as que estavam mais revisadas já... — dizem respeito a pessoas e fatos reais; foram recados, flertes estratégicos, “fragmentos do meu discurso amoroso”, por assim dizer, embora, com as revisões, essa característica confessional vá se perdendo. Acho que os versos podem até ter apelo — creio que tenham —, mas não foram construídas como algo que visasse a ser apelativo; entende o quero dizer? Vieram de uma série de transbordamentos muito pessoais que, depois, foram se afastando do pessoal: com o tempo, inclusive, já não sei mais, exatamente, o que escrevi para quem, salvo um caso ou outro. Mas isso é da dinâmica da vida cotidiana também, essa sobreposição e fusão das pessoas no imaginário, que acabam sendo uma pessoa só: no meu caso, a Mulher, a Bem-amada. Mesmo a idéia de definir as poesias como poesia fantástica, aludindo a William Blake, surgiu durante o meu monólogo diário via Twitter — algo que não tenho feito, ultimamente, mas já fiz muito —, e surgiu de forma não planejada: foi uma autocrítica e não um projeto. Então, a inspiração inicial para escrever “Versos Íncubos”, te respondendo, veio do dia-a-dia e como extravasamento. Entraram nesse livro poucas, muito poucas poesias cerebrais, daquelas que a gente vai buscar como que no fundo de uma piscina, letra por letra. “Horológio” seria uma destas. “Acróstico Doce” seria outra. Ambas, aliás, — acrósticos ideográficos, uma forma que criei ainda na juventude, aos dezoito ou dezenove anos, sob a influência dos já referidos trabalhos do Décio Pignatari sobre literatura e semiótica.

Qual a relação do mito Eros e Psique com a sua obra?

Pois é, a Mitologia faz parte da minha vida, desde a infância. No meu aniversário de onze anos de idade, ganhei de presente aquela coleção da Abril Cultural chamada “Mitologia”, em três tomos, muito bem ilustrada. Lembro que no meu bolo de aniversário havia uma figura do Batman... Embora eu já não me interessasse mais muito por desenhos animados e literatura feitos para crianças. Mas era uma criança. E lembro de alguém — que não fazia parte da família —, dizendo que eu iria ler aquilo como quem lê histórias em quadrinhos, ou contos infantis, mas não entenderia nada do significado profundo dos mitos... Bem, em um ano, eu já conhecia as histórias contidas naqueles livros, como em outros livros da estante do meu pai, de trás para frente. Mas, para além das figuras poéticas, eu tinha também uma ligação muito forte com o modo helênico de pensar o mundo e a vida. (Quando ganhei os livros, aos onze anos, já me interessava muito pelo mito grego, daí a o presente, que foi, de longe, o meu favorito, por muitos anos). E essa ligação foi e é um dos sustentáculos da minha formação como pessoa. E como escritor.
“Eros e Psiquê”, especificamente — que, creio, estarão retratados na capa do livro, através da foto de uma escultura de Antonio Canova (1757 – 1822) — ilustram bem o exercício básico do eu-lírico em “Versos Íncubos”. Eros é a personificação do amor; Psiquê, a personificação da alma. O mito de Psiquê, que tem de realizar diversos trabalhos hercúleos para que Afrodite, mãe de Eros, permita o seu amor com o deus, retrata a evolução da própria alma em busca conhecer-se a si mesma. Ou de realizar a si mesma. É mito sobre a construção da individualidade, portanto. E as idas e vindas do seu relacionamento com Eros, mostram o amor sempre em fuga, como um ideal que impulsiona o comportamento. Veja você que, em Freud, coerentemente, o motor do comportamento é a libido: o impulso sexual, ou amoroso. A palavra “Eros”, em grego, significa “o alado”, aquele que voa. Que se arroja em direção... ao futuro, podemos dizer. O amor rompe a imobilidade e produz o tempo, buscando, hoje, agora, algo que ainda não é. Esse seu movimento, esse seu vôo é Sonho: o poder de projetar-se ao futuro desejado. O desejo, então, é o princípio do futuro, e do tempo. O desejo que está contido no amor. E o Sonho são suas asas: o que o torna capaz de ir buscar a bem-amada, adormecida — como está Psique em dado momento da lenda — para torná-la em Sonhadora também, em alada: em deusa que galga o Olimpo e é aceita entre os olímpicos. Há o final feliz no mito. Mas apenas ao cabo de um labirinto de idas e voltas, de sorte que esse final permanece sendo, metaforicamente, um ponto ideal a atingir.
“Versos Íncubos” — naquele miolo que dá nome ao livro — é sobre o poder de vôo, de Sonho da palavra amorosa, do Verbo criador, que fecunda a bem-amada, fecunda a sua alma, com o gérmen do poder de vôo, do poder de Sonho, para fazê-la Sonhadora também; para fazê-la buscar por ele, tal como ele a busca, diria: indefinidamente.

Em seu livro notamos vários arquétipos da figura feminina onde a mulher é retratada de forma sensível e ao mesmo tempo erótica. Você poderia descrever um pouco sobre as diversas personificações do feminino em sua obra?

Eu acho que a mulher, em “Versos Íncubos”, é muito iminentemente mãe — ela “guarda” o eu-lírico no fundo de si, e ele pede: “aceita-me, me abriga, sim: / com dor e amor, qual num parto” —; e é também muito claramente filha — “Se eu fosse um mutante / qual Zeus [...]bateria à tua porta numa forma / inusitada. Bateria e bateria ansiosamente. / Abririas chocada: era teu pai, ora, / diante de ti, todo encharcado.”. E aqui vale dizer: mãe-filha, filha-mãe são, no fundo, duas faces da mesma moeda psicológica... De acordo com a nossa visão e a poética empregada em “Versos Íncubos”.

 Além disso, a mulher, nesse livro, é, por vezes, facultativamente, — irmã. Ela é alvo implacável de certa “molecagem”, muito cúmplice, muito intimista, muito irmanal: “Meu verso te faz rir alto e te mata / de raiva sincera, / te deixa puta, te deixa louca, / te deixa rouca, mas não esquece em ti.”. E essas são as figuras do inconsciente mais básicas através de que a mulher é personificada no livro: a filha-mãe e a irmã. Que podem ser dois momentos de visão da mesma pessoa, inclusive... Mas, de início, umas são filhas-mães, outras, irmãzinhas amadas (rindo aqui, ao escrever isso).

Depois disso, vem a mulher que não se insere nesse panteão das entidades familiares femininas, algo sagradas, todas elas, na nossa cultura, de base cristã. Vem a mulher apreendida através de uma perspectiva, digamos, pagã. E essa mulher que não se enquadra naqueles tipos do inconsciente (filha-mãe, irmã) gera imagens poéticas mais fortes. Ela é, em dado momento, “anal e quadrúpeda, / antropoteomórfica, / desantropoteleológica, / infinita, infinita”. Ela é, de outra feita, “gata selvagem”, e é dito: “tens a alma de um vulcão a estrondar / dentro de ti e a transbordar-te violenta.”. Ou seja: essa mulher é um enigma e o eu-lírico acaba... “pagando uns mistérios”, meio loucos e excessivos, para descrevê-la. Ela ganha uma porção de nomes figurados, exatamente porque não tem um nome prévio, familiar: é uma inominada em relação ao psiquismo, não correspondendo a qualquer modelo feminino confortavelmente conhecido. E, ao mesmo tempo, o trato com ela é estranhamente simples, direto; regem-no impulsos muito puros, anteriores à construção do ego; impulsos esses que não diria mais eróticos que os relativos às filhas-mães e às irmãzinhas. Não: ao contrário, os diria, a tais impulsos, — menos “erotizados” (para lançar mão de um termo dos psicanalistas) e mais inerentes ao indivíduo, enquanto pulsação que precede à cultura, ao superego, à dimensão coletiva-subjetiva do eu. Algo que, para os espiritualistas, se pareceria mais com o espírito, ou a lama que com a carne; entende? Mas que, para mim, que não trabalho com a idéia de espírito (fluídico) é — o animal transcendental. Então, a relação do eu-lírico com a Inominada é uma relação regida pelos impulsos que brotam diretamente do animal transcendental e são, portanto, pré-carnais, anteriores a essa tal “carne”, esse tecido tão complexo, em que há muito de mãe-filha, de irmã, e de toda uma gama de valores associados a tais conceitos. Quando um homem e uma mulher se reconhecem como os Inominados, um para o outro, essa seria aquela relação que a cultura chama de amor de “almas gêmeas”.

A sua obra além de ser atrativa pela forma bela e poética como foi escrita, também demonstra a intenção de existir como obra prima sensorial através das palavras. Uma das frases que é cabível como descrição de “Versos Íncubos” é: Meu verso no teu corpo. Você poderia aprofundar a reflexão e a correlação da frase com o livro?

Muito obrigado, Marina, pelo elogio. Essa frase, “meu verso no teu corpo”, — que nós usamos no booktrailer, inclusive, não é? — diz respeito àquele transporte da palavra alada, erótica, do verso e do Verbo, semântico e seminal, para o íntimo, a alma da bem-amada. Ali, ou a partir dali, esse verso erótico deve germinar e se tornar corpóreo, se transformar em arrepio, em suor, em hormônios: mexer com a química do sangue da sua procurada, da sua Psiquê desejada. Corporificando-se nela, o amor, por meio do Verbo, do Fiat, por meio do signo-sêmen, confere asas à bem-amada, fá-la Sonhadora, como ele, e, juntos, podem voar, ascender — no sentido de realizar uma ascese, um processo de autoconhecimento e crescimento em sentidos muito amplos... — e, finalmente, transcender.

Ao realizar essa... pequena Odisséia, que é todo amor, toda história de amor, ambos, o eu-lírico e a bem-amada, estão expandindo e externando as suas individualidades. Estão ganhando — corpo, i.e., definição, extensão no espaço-tempo... Não é? Então, a palavra está se corporificando nos dois. Eros é dito também — o elemento de ligação. Mas, na poética de “Versos Íncubos”, esse elemento de ligação usa de... um meio para estabelecer comunicação sensorial com a psiquê da amada, que é a palavra, o verso, nas suas possibilidades de sugestão e de... magia. Ora, o que é magia? Mover algumas coisas aqui e produzir efeitos lá, em outra parte... numa espécie de “emaranhamento quântico”, que os gregos pensavam através da noção de “sympátheia” (συμπάθεια), ou sim-patia: convergência, união de dois “páthi̱s”, de duas paixões. É por aí.

Qual mensagem você deseja deixar ao público que acompanha o seu trabalho?

O que eu faço não encerra uma mensagem moral. Não há uma moral da história. Em nada do que faço. A obra de arte pretende, autenticamente, gerar afetos em quem se dá a apreciá-la. E “Versos Íncubos” quer gerar afetos sobre as psiquês das leitoras, como fossem elas, cada qual, a bem-amada procurada pelo eu-lírico, na sua viagem heróica, odisséica e mágica, em busca, não de si mesmo, a priori, mas do outro (ou da outra). Pois só conhecemos a nós mesmos, através dos olhos do outro descoberto, abordado empaticamente: incorporado. O livro quer afetar os amantes, em geral, provocando-lhes o desejo de procurar pelas amadas para além de si mesmos. Das suas apreensões do que elas são. Ir buscá-las onde elas próprias são, e sentem. Lançar os seus versos para pulsar nos seus corpos. Para sentir dentro delas, com elas. E frutificarem lá. Inseminando, engravidando de cristais, de Sonho aquela a quem se quer ver convertida em Sonhadora também, em alada, para que voe, de sua parte, ao encontro do amor... Acho que é isso.

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