Igor, como e
quando você iniciou a sua carreira como escritor?
Eu comecei a escrever poesias aos dezoito anos e meio de
idade. Até esse momento, todos da família, inclusive, eu mesmo, achávamos que o
meu caminho seria no campo das artes plásticas. Porque já nasci desenhando.
Passei a infância desenhando, noite e dia. Os desenhos eram coisas que extraía
da Mitologia Grega, com que tenho uma relação profunda, desde criança, e coisas
que via na televisão, nos desenhos animados. Na adolescência, passei a desenhar
mulheres. Sobretudo, mulheres nuas. Comprava a revista “Ele e Ela”, hoje
extinta, creio, a revista “Playboy” e retratava as mulheres, sempre em grafite,
preto no branco. Cheguei a prestar vestibular para Belas Artes naquele mesmo
ano, em que completei dezoito, e passei bem, na prova de habilidade específica,
inclusive, que incluía desenhar uma modelo vivo, de pé sobre uma mesa, mas
perdi a data da inscrição... Andava com a cabeça nas nuvens. E, de repente,
depois de ler dois livros do Décio Pignatari sobre literatura e semiótica,
declarei: não desenho mais; agora vou escrever. A razão que apontei — além da
forte impressão que as investigações de Pignatari me causaram, foi a seguinte:
que a literatura você pode revisar, indefinidamente, e o trabalho de artes
plásticas, não. Uma explicação que eu mesmo acho curiosa, hoje. Mas, ao mesmo
tempo, observa-se que a revisão é parte essencial do meu processo como
escritor.
De onde veio a
inspiração para escrever o livro “Versos Íncubos”?
“Versos Íncubos” é uma compilação de poesias que, em sua
maioria, estão relacionadas, inicialmente, a fatos externos a mim, i.e., fatos
do dia-a-dia. As poesias de amor que são o centro do livro — e que escolhi,
quando fiz a compilação, por serem as que estavam mais revisadas já... — dizem
respeito a pessoas e fatos reais; foram recados, flertes estratégicos,
“fragmentos do meu discurso amoroso”, por assim dizer, embora, com as revisões,
essa característica confessional vá se perdendo. Acho que os versos podem até
ter apelo — creio que tenham —, mas não foram construídas como algo que visasse
a ser apelativo; entende o quero dizer? Vieram de uma série de transbordamentos
muito pessoais que, depois, foram se afastando do pessoal: com o tempo, inclusive,
já não sei mais, exatamente, o que escrevi para quem, salvo um caso ou outro. Mas
isso é da dinâmica da vida cotidiana também, essa sobreposição e fusão das
pessoas no imaginário, que acabam sendo uma pessoa só: no meu caso, a Mulher, a
Bem-amada. Mesmo a idéia de definir as poesias como poesia fantástica, aludindo
a William Blake, surgiu durante o meu monólogo diário via Twitter — algo que
não tenho feito, ultimamente, mas já fiz muito —, e surgiu de forma não
planejada: foi uma autocrítica e não um projeto. Então, a inspiração inicial para
escrever “Versos Íncubos”, te respondendo, veio do dia-a-dia e como
extravasamento. Entraram nesse livro poucas, muito poucas poesias cerebrais,
daquelas que a gente vai buscar como que no fundo de uma piscina, letra por
letra. “Horológio” seria uma destas. “Acróstico Doce” seria outra. Ambas, aliás,
— acrósticos ideográficos, uma forma que criei ainda na juventude, aos dezoito
ou dezenove anos, sob a influência dos já referidos trabalhos do Décio
Pignatari sobre literatura e semiótica.
Qual a relação do
mito Eros e Psique com a sua obra?
Pois é, a Mitologia faz parte da minha vida, desde a
infância. No meu aniversário de onze anos de idade, ganhei de presente aquela
coleção da Abril Cultural chamada “Mitologia”, em três tomos, muito bem
ilustrada. Lembro que no meu bolo de aniversário havia uma figura do Batman... Embora
eu já não me interessasse mais muito por desenhos animados e literatura feitos
para crianças. Mas era uma criança. E lembro de alguém — que não fazia parte da
família —, dizendo que eu iria ler aquilo como quem lê histórias em quadrinhos,
ou contos infantis, mas não entenderia nada do significado profundo dos mitos...
Bem, em um ano, eu já conhecia as histórias contidas naqueles livros, como em
outros livros da estante do meu pai, de trás para frente. Mas, para além das
figuras poéticas, eu tinha também uma ligação muito forte com o modo helênico
de pensar o mundo e a vida. (Quando ganhei os livros, aos onze anos, já me
interessava muito pelo mito grego, daí a o presente, que foi, de longe, o meu
favorito, por muitos anos). E essa ligação foi e é um dos sustentáculos da
minha formação como pessoa. E como escritor.
“Eros e Psiquê”, especificamente — que, creio, estarão
retratados na capa do livro, através da foto de uma escultura de Antonio Canova
(1757 – 1822) — ilustram bem o exercício básico do eu-lírico em “Versos
Íncubos”. Eros é a personificação do amor; Psiquê, a personificação da alma. O
mito de Psiquê, que tem de realizar diversos trabalhos hercúleos para que
Afrodite, mãe de Eros, permita o seu amor com o deus, retrata a evolução da
própria alma em busca conhecer-se a si mesma. Ou de realizar a si mesma. É mito
sobre a construção da individualidade, portanto. E as idas e vindas do seu
relacionamento com Eros, mostram o amor sempre em fuga, como um ideal que
impulsiona o comportamento. Veja você que, em Freud, coerentemente, o motor do
comportamento é a libido: o impulso sexual, ou amoroso. A palavra “Eros”, em
grego, significa “o alado”, aquele que voa. Que se arroja em direção... ao
futuro, podemos dizer. O amor rompe a imobilidade e produz o tempo, buscando,
hoje, agora, algo que ainda não é. Esse seu movimento, esse seu vôo é Sonho: o
poder de projetar-se ao futuro desejado. O desejo, então, é o princípio do
futuro, e do tempo. O desejo que está contido no amor. E o Sonho são suas asas:
o que o torna capaz de ir buscar a bem-amada, adormecida — como está Psique em
dado momento da lenda — para torná-la em Sonhadora também, em alada: em deusa
que galga o Olimpo e é aceita entre os olímpicos. Há o final feliz no mito. Mas
apenas ao cabo de um labirinto de idas e voltas, de sorte que esse final
permanece sendo, metaforicamente, um ponto ideal a atingir.
“Versos Íncubos” — naquele miolo que dá nome ao livro — é
sobre o poder de vôo, de Sonho da palavra amorosa, do Verbo criador, que
fecunda a bem-amada, fecunda a sua alma, com o gérmen do poder de vôo, do poder
de Sonho, para fazê-la Sonhadora também; para fazê-la buscar por ele, tal como
ele a busca, diria: indefinidamente.
Em seu livro
notamos vários arquétipos da figura feminina onde a mulher é retratada de forma
sensível e ao mesmo tempo erótica. Você poderia descrever um pouco sobre as
diversas personificações do feminino em sua obra?
Eu acho que a mulher, em “Versos Íncubos”, é muito iminentemente
mãe — ela “guarda” o eu-lírico no fundo de si, e ele pede: “aceita-me, me
abriga, sim: / com dor e amor, qual num parto” —; e é também muito claramente
filha — “Se eu fosse um mutante / qual Zeus [...]bateria à tua porta numa forma
/ inusitada. Bateria e bateria ansiosamente. / Abririas chocada: era teu pai,
ora, / diante de ti, todo encharcado.”. E aqui vale dizer: mãe-filha, filha-mãe
são, no fundo, duas faces da mesma moeda psicológica... De acordo com a nossa
visão e a poética empregada em “Versos Íncubos”.
Além disso, a mulher, nesse
livro, é, por vezes, facultativamente, — irmã. Ela é alvo implacável de certa
“molecagem”, muito cúmplice, muito intimista, muito irmanal: “Meu verso te faz
rir alto e te mata / de raiva sincera, / te deixa puta, te deixa louca, / te
deixa rouca, mas não esquece em
ti.”. E essas são as figuras do inconsciente mais básicas
através de que a mulher é personificada no livro: a filha-mãe e a irmã. Que
podem ser dois momentos de visão da mesma pessoa, inclusive... Mas, de início,
umas são filhas-mães, outras, irmãzinhas amadas (rindo aqui, ao escrever isso).
Depois disso, vem a mulher que não se insere nesse panteão
das entidades familiares femininas, algo sagradas, todas elas, na nossa
cultura, de base cristã. Vem a mulher apreendida através de uma perspectiva, digamos,
pagã. E essa mulher que não se enquadra naqueles tipos do inconsciente (filha-mãe,
irmã) gera imagens poéticas mais fortes. Ela é, em dado momento, “anal e
quadrúpeda, / antropoteomórfica, / desantropoteleológica, / infinita,
infinita”. Ela é, de outra feita, “gata selvagem”, e é dito: “tens a alma de um
vulcão a estrondar / dentro de ti e a transbordar-te violenta.”. Ou seja: essa
mulher é um enigma e o eu-lírico acaba... “pagando uns mistérios”, meio loucos
e excessivos, para descrevê-la. Ela ganha uma porção de nomes figurados,
exatamente porque não tem um nome prévio, familiar: é uma inominada em relação
ao psiquismo, não correspondendo a qualquer modelo feminino confortavelmente
conhecido. E, ao mesmo tempo, o trato com ela é estranhamente simples, direto;
regem-no impulsos muito puros, anteriores à construção do ego; impulsos esses que
não diria mais eróticos que os relativos às filhas-mães e às irmãzinhas. Não: ao
contrário, os diria, a tais impulsos, — menos “erotizados” (para lançar mão de
um termo dos psicanalistas) e mais inerentes ao indivíduo, enquanto pulsação
que precede à cultura, ao superego, à dimensão coletiva-subjetiva do eu. Algo
que, para os espiritualistas, se pareceria mais com o espírito, ou a lama que
com a carne; entende? Mas que, para mim, que não trabalho com a idéia de
espírito (fluídico) é — o animal transcendental. Então, a relação do eu-lírico
com a Inominada é uma relação regida pelos impulsos que brotam diretamente do
animal transcendental e são, portanto, pré-carnais, anteriores a essa tal
“carne”, esse tecido tão complexo, em que há muito de mãe-filha, de irmã, e de
toda uma gama de valores associados a tais conceitos. Quando um homem e uma
mulher se reconhecem como os Inominados, um para o outro, essa seria aquela
relação que a cultura chama de amor de “almas gêmeas”.
A sua obra além
de ser atrativa pela forma bela e poética como foi escrita, também demonstra a
intenção de existir como obra prima sensorial através das palavras. Uma das
frases que é cabível como descrição de “Versos Íncubos” é: Meu verso no teu corpo. Você poderia aprofundar a reflexão e a
correlação da frase com o livro?
Muito obrigado, Marina, pelo elogio. Essa frase, “meu verso
no teu corpo”, — que nós usamos no booktrailer, inclusive, não é? — diz
respeito àquele transporte da palavra alada, erótica, do verso e do Verbo,
semântico e seminal, para o íntimo, a alma da bem-amada. Ali, ou a partir dali,
esse verso erótico deve germinar e se tornar corpóreo, se transformar em
arrepio, em suor, em hormônios: mexer com a química do sangue da sua procurada,
da sua Psiquê desejada. Corporificando-se nela, o amor, por meio do Verbo, do
Fiat, por meio do signo-sêmen, confere asas à bem-amada, fá-la Sonhadora, como
ele, e, juntos, podem voar, ascender — no sentido de realizar uma ascese, um
processo de autoconhecimento e crescimento em sentidos muito amplos... — e,
finalmente, transcender.
Ao realizar essa... pequena Odisséia, que é todo amor, toda
história de amor, ambos, o eu-lírico e a bem-amada, estão expandindo e
externando as suas individualidades. Estão ganhando — corpo, i.e., definição,
extensão no espaço-tempo... Não é? Então, a palavra está se corporificando nos
dois. Eros é dito também — o elemento de ligação. Mas, na poética de “Versos
Íncubos”, esse elemento de ligação usa de... um meio para estabelecer
comunicação sensorial com a psiquê da amada, que é a palavra, o verso, nas suas
possibilidades de sugestão e de... magia. Ora, o que é magia? Mover algumas
coisas aqui e produzir efeitos lá, em outra parte... numa espécie de
“emaranhamento quântico”, que os gregos pensavam através da noção de “sympátheia”
(συμπάθεια),
ou sim-patia: convergência, união de dois “páthi̱s”, de duas paixões. É por aí.
Qual mensagem você
deseja deixar ao público que acompanha o seu trabalho?
O que eu faço não encerra uma mensagem moral. Não há uma
moral da história. Em nada do que faço. A obra de arte pretende,
autenticamente, gerar afetos em quem se dá a apreciá-la. E “Versos Íncubos”
quer gerar afetos sobre as psiquês das leitoras, como fossem elas, cada qual, a
bem-amada procurada pelo eu-lírico, na sua viagem heróica, odisséica e mágica,
em busca, não de si mesmo, a priori,
mas do outro (ou da outra). Pois só conhecemos a nós mesmos, através dos olhos
do outro descoberto, abordado empaticamente: incorporado. O livro quer afetar
os amantes, em geral, provocando-lhes o desejo de procurar pelas amadas para
além de si mesmos. Das suas apreensões do que elas são. Ir buscá-las onde elas
próprias são, e sentem. Lançar os seus versos para pulsar nos seus corpos. Para
sentir dentro delas, com elas. E frutificarem lá. Inseminando, engravidando de
cristais, de Sonho aquela a quem se quer ver convertida em Sonhadora também, em
alada, para que voe, de sua parte, ao encontro do amor... Acho que é isso.
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